MARCELO RUSSELL

A franqueza tem limite na indelicadeza. Passada a fronteira, está a rudeza.

Textos


Quando dei conta

Quando dei conta havia formado, pela falta do que fazer durante longos períodos do dia, um parâmetro para as palminhas. Uma palminha isolada: denota que não valeu a pena, nem pela iniciativa. Um par de palminhas:  valeu, mas só pela tentativa de agradar. Uma trinca: gostei. Uma quadra: muito bom. Uma quina ou mais: excelente, nem eu faria melhor. Ademais, descobri que desejo ardentemente voltar a comer bolo soprado. Tô nem aí para as gotículas que voam pra cima da cobertura, eu quero é festejar com os amigos e, claro, comer doces e salgados de graça. Não ver o Rei Roberto Carlos em sua live soprar as velinhas do aniversário depois de tantos anos, foi angustiante. Parecia o entardecer final da Jovem Guarda. Não sabia, mas lavar louças é uma atividade gratificante. Vê-las brilhando no escorredor é algo indescritível. Uma banana para as lavadoras de louças! Elas nos roubam essa glória. Aliás, lavar frutas também é legal, sobretudo as bananas. Lavo uma, como duas, sempre assim. A pior experiência é com as folhas de alface. Desisti de lavá-las. Elas murcham. Não as compro mais. Assear o chão e o balcão da cozinha ao mesmo tempo é bom. Só é ruim porque a família vai acordando aos poucos e o primeiro destino do dia de cada membro familiar é aquele local. Prepara-se o café da manhã, o lanchinho, outra merendinha, o cachorro lambe as migalhas a baba lhe escorre pelo piso e quando chega a hora do almoço, já está tudo sujo outra vez. Da cozinha, só não me adaptei ao fogão. Foi nele que ganhei uma modelar queimadura na mão e toquei fogo em uma toalha de prato. Ele, com suas cinco enormes bocas, parece uma urtiga-do-mar a me advertir o tempo todo: não se meta comigo, eu sou fogo! Saudades das nossas auxiliares domésticas. Por falar em saudade e em acordar, despertei, nas vezes em que consegui dormir durante a pandemia, sentindo saudades vivas. Compreendi, afinal, o que são saudades vivas ditas pelo poeta. São aquelas que podem ser revividas enquanto há vida. Mas, no caso, ao mesmo tempo não podem porque há estranhos e imbatíveis agentes viróticos lá fora. Dá para entender? É, parece complicado, contudo, poeticamente este é o significado: se mato a saudade viva, o vírus mata minha vida. Ahãm, agora compreendeu! Já posso sair?
MARCELO RUSSELL
Enviado por MARCELO RUSSELL em 16/06/2020
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras