MARCELO RUSSELL

A franqueza tem limite na indelicadeza. Passada a fronteira, está a rudeza.

Textos

EPOPÉIA VOCACIONAL RECIFENSE

O Recife é vocacionado para o desporto náutico. De modo peculiar para o mergulho autônomo recreativo. Lamento, com lágrimas salgadas, nunca um governante ter olhos para essa fácil constatação. Nossa divina comédia.

No exterior há lugares muito menos privilegiados que receberam a dose exata de fomento do poder público e se tornaram rapidamente em ícones para o mergulho. Atraem, aos milhares, visitantes com alto poder aquisitivo, gerando, no estilo ecologicamente correto, riqueza e desenvolvimento para aquelas comunidades.


Milhares de pessoas ao redor do mundo passaram a ter o mergulho como hobby. Com o auxílio de um tanque de alta pressão cheio de ar-comprimido, de certa forma, o mergulhador começou a imitar a complexa atividade dos seres marinhos. Deslocar-se no fundo do mar, além dos limites do ar dentro dos pulmões, livre e independente, de outrem ou de qualquer aparelho atrelado ao mundo fora d’água, tornou-se realidade para o homem.

O início confuso da atividade, batizada como Aqualung, voltada para investigações imprevisíveis e a inexperiência científica, deu grande carga de desconfiança em relação à segurança do mergulho. Ainda hoje midiaticamente alta. Em geral é considerado esporte radical. Porém, a evolução da atividade a tornou mansa. Hoje, equipamento, planejamento e treinamento adequados, conforme exigirem as circunstâncias do mergulho a ser realizado, desagregam desse esporte a falsa imagem de perigo.

Diria mesmo que, numa escala de zero a dez, o pára-quedismo estaria no grau dez (perigo máximo) e o mergulho recreativo muito próximo ao zero.

No mergulho, exclusivamente, se contempla o fundo do mar. Não abarca adrenalina. Não há aventureiros corajosos, só gente comum devidamente habilitada. Não há competição, só companheirismo. Não há estresse, só relaxamento. Não há súbitos, só atividade planejada. Sob o mais mínimo desconforto o mergulhador simplesmente aborta o mergulho e retorna à superfície e ao barco, ou mesmo, retorna à praia.

Encerramos aqui no Recife, como suporte extra, um calendário ideal para a prática do mergulho. A temporada totaliza nove meses. De setembro a maio. Há anos em que se prolonga por mais um mês. Nada garantido, mas não quimérico.

Ao longo da estação, sempre presentes em cena, algumas regras de ouro: sol a pino; céu azul com escassas nuvens; pouquíssimas e passageiras chuvas; águas cristalinas; classicamente uma visibilidade insonhável; ventos brandos beijando o rosto do mar; ondas de silhuetas baixas; correntes marinhas plácidas e temperaturas na superfície e no fundo continuamente mornas. Esse peculiar tesouro concede isoladamente ao Recife um diferencial admirado pela sociedade mundial do mergulho. Falta o poder público explorá-lo, sem utopia e em definitivo, como merecido e necessário.

Um parque admirável, com mais de vinte naufrágios. Bem próximo à costa recifense. Como uma floresta tropical, mapeado e farto de seres vivos. Diversificam em razão do sítio submerso visitado, variando conforme profundidade e distância da praia. Assim a natureza marinha desafia nossa compreensão. Conquista nossa admiração com comportamento, beleza, variedade e quantitativo surpreendentes
.

Espontaneamente as espécies dão exuberantes exibições. Verdadeiros espetáculos. Possuem habilidades de ordem inimagináveis. Todos são artistas do mesmo quilate. Como Michel Jackson. Únicos, de gerações em gerações.

Queria um dia lhes dizer que mergulhar é uma magia.

É como se vestir de escama, com barbatanas no lombo, cheiro de mar nos cabelos, brisa de prazer na pele e nos dedos. É respirar com guelras, ter uma bússola nos olhos e relógio na cabeça. Pés são caudas, não deixam pegadas nem machucam o meio ambiente.

Queria lhes descrever que isso é o total sossego, a paz que em terra não se vê, o sopro molhado de encantadora vida.

Demorar-me uma hora aos 30 metros de profundidade, sob a pressão da gigantesca lâmina d’água salgada existente entre minhas costas e a superfície do mar, apaga da memória e do corpo a pressão de, pelo menos, 30 dias do estresse vindo do trabalho, do árduo trânsito, da violência urbana, das agruras humanas, das decepções, das depressões, das frustrações e da corrida pela nossa sobrevivência.


Não se olvide que só temos uma vida. Mas não uma só luz. Morrer sem ter visto raios do Sol se alastrando no fundo do oceano, revelando-nos uma parte da dádiva divina ainda intocada pelo homem, é ter vivido sem conhecer a natureza como Deus a desejou na Suma Criação, com todas as luzes (e cores).

Conglomeradas essas razões é injustificável não disseminar aqui a atividade do mergulho autônomo recreativo. Pobre cidade sem leme, sem rumo e sem timoneiros ou capitães. Atrelada a uma âncora excessiva, amaina suas velas, dá as costas aos seus valores e soçobra em seu próprio desatino. Renega sua própria sorte. Vive sob a crueldade do poder e daqueles que só ambicionam o dinheiro. Canta um blues fúnebre baseado nesse drama. De fato, melancólico como um blues. E tudo acaba se repetindo.

Não houve e nem haverá reação significativa por parte dos filhos dessa terra. Culturalmente, um povo sem sagacidade. Ah, Recife! Deslembra da pátria-mãe o laivo de conceber grandes navegadores, que tinham o mar como alargamento do lar. Carece repensar e redesenhar seu legado.

Tem o título de “Capital dos Naufrágios do Brasil”, mas seus governantes nunca interpretaram a sua propensão náutica como pilar de desenvolvimento. Quão, apesar de tudo, triste e complexa essa epopéia vocacional recifense!

MARCELO RUSSELL
Enviado por MARCELO RUSSELL em 16/06/2011
Alterado em 25/06/2013
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